MANLIO DINUCCI
GUERRA NUCLEAR
O DIA ANTERIOR
De Hiroshima até hoje:
Quem e como nos conduzem à catástrofe
Capítulo 9
O DIA ANTERIOR,
ENQUANTO ESTAMOS A TEMPO
9.1 A estratégia do
Império Americano do Ocidente
Um vasto arco de tensões e conflitos
estende-se da Ásia Oriental à Ásia Central, do Médio Oriente à Europa, da
África à America Latina. Os «pontos quentes» ao longo deste arco
intercontinental – Península Coreana, Mar da China Meridional, Afeganistão,
Síria, Iraque, Irão, Ucrânia, Líbia, Venezuela e outros – têm histórias e
características geopolíticas diferentes, com factores específicos
sócio-económicos internos, mas, ao mesmo tempo, estão ligados por um único
factor: a estratégia com a qual os Estados Unidos da América procuram manter a
sua posição de superpotência dominante.
Os Estados Unidos ainda são a primeira
potência económica do mundo, sobretudo graças aos capitais e aos mecanismos com
que dominam o mercado financeiros global,às multinacionais com que
exploram os recursos humanos e materiais de cada continente, à alta tecnologia
e às patentes relacionadas na sua posse, ao papel penetrante dos seus grupos de
multimedia que influenciam as opiniões e os gostos de biliões de utentes à
escala planetária.
Basta pensar que a NYSE, a principal Bolsa de
Valores do mundo (conhecida como Wall Street), com sede em Nova York,
incorporou a Euronext, em 2007, criando a NYSE-Euronext e esta, por sua vez, é
comprada em 2013 pela Intercontinental Exchange, um grupo americano que gere
outras 10 Bolsas prestigiosas, com um valor de acções que totaliza o dobro
do produto interno bruto mundial. Basta pensar que a Apple, a multinacional
americana número um do mundo no sector dos produtos informáticos, tem uma rede
de mais de 800 fábricas em trinta países, com mais de um milhão e meio de
operários e técnicos que produzem os componentes simples, os quais são enviados
a 18 instalações de montagem final, de onde saem os produtos finais para serem
distribuídos pela rede de vendas a escala global. Basta pensar que, entre os 10
grupos mediáticos mais destacados do mundo, nove são americanos. O grupo Time
Warner é composto por mais de 300 sociedades, entre as quais a Warner Bros que
produz filmes e telefilmes difundidos em todo o mundo, a CNN, cujo noticiário é
transmitido vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, em todo o mundo, a Time
Inc. e outras casas editoras que publicam mais de cem revistas internacionais.
A compra da Time Warner pela AT&T, a gigantesca empresa americana dos telefones
móveis/celulares e da Internet, cria um grupo multimédia de dimensões ainda
mais colossais.
Com estes e outros instrumentos, os Estados
Unidos permanecem a principal potência económica do mundo. A sua supremacia é
posta em perigo ao emergir novos elementos/personagens estatais e sociais.
Salienta-se a Cimeira do
BRICS (Brasil, Rússia,Índa, China, África do Sul), ocorrida em 2017, em Xiamen,
na China. Os BRICS exigem a revisão das quotas e, portanto, dos votos
atribuídos a cada país, no interior do Fundo Monetário Internacional: os USA,
por si, detêm mais do dobro dos votos totais dos 24 países da
América Latina (México incluído) e o G7 (EUA, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha,
França, Itália e Canadá) detêm o triplo dos votos do grupo dos BRICS. Dando voz
às «preocupações do BRICS sobre a injusta arquitectura económica e financeira
global, que não tem em consideração o peso crescente das economias emergentes,
o Presidente russo Putin sublinha a necessidade de «superar o domínio
excessivodo número limitado das moedas de reserva». A referência ao dólar
USA é clara, pois que constitui a moeda dominante nas moedas de reserva e no
comércio mundial, em particular aquela com que se faz a avaliação do preço
internacional do petróleo.
Porém, em 2016, o yuan chinês entra para fazer
parte do cabaz de moedas de reserva do Fundo Monetário Internacional juntamente
com o dólar, o euro, o yen e a libra esterlina. Um ano depois, a Venezuela
começa a indicar o preço do petróleo, não em dólares mas em yuan chineses. É a
resposta de Caracas às sanções emanadas em 2017, pela Administração Trump, mais
duras do que as impostas em 2014, pela Administração Obama: elas impedem a
Venezuela de sacar os dólares da venda do petróleo aos Estados Unidos, dólares
utilizados para importar para a Venezuela bens de consumo como produtos
alimentares e medicamentos. As sanções também impedem a compra e venda de
títulos emitidos pela PDVSA, a companhia petrolífera estatal venezuelana.
Washington tem em vista, desta maneira, um duplo objectivo: aumentar a penúria
de bens de primeira necessidade na Venezuela e assim, o descontentamento
popular, para fomentar a oposição interna, espalhada e sustentada pelos USA)
para derrubar o governo bolivariano; manter o Estado venezuelano em default,
impedindo-o de pagar as parcelas da dívida externa, ou seja, para levar à
falência o Estado com as maiores reservas petrolíferas do mundo, quase dez
vezes mais do que os Estados Unidos.
No mesmo período em que Caracas começa a
quotizar o preço da venda do petróleo não em dólares USA mas em yuan chineses,
espalha-se a notícia que Pequim tenciona lançar contratos ‘futuros’ de compra e
venda de petróleo em yuan, convertíveis em ouro. «Se
os novos contratos futuros seimpuserem, destruindo mesmo parcialmente o poder
excessivo do petrodólar, seria um golpe enorme para a economia americana»,
comenta o Sole 24 Ore
A ser submetido em discussão pela Russia,
China e outros países não só o poder excessivo do petrodólar (moeda de reserva
obtida pela venda do petróleo), mas a própria hegemonia do dólar. O seu valor é
determinado, não pela capacidade real económica dos Estados Unidos, mas pelo
facto de que ele constitui quase dois terços das reservas das moedas mundiais e
a moeda com que se estabelece sobre o mercado mundial o preço do petróleo, do
ouro, de outras matérias primas e, em geral, das mercadorias. Isso permite à
Reserva Federal, ao Banco Central ( que é um Banco privado), imprimir milhares
de biliões de dólares com o qual é financiado o colossal débito público USA –
cerca de 23 triliões de dólares – através da aquisição de obrigações e de
outros títulos emitidos pelo Tesouro. Nesse âmbito, a decisão venezuelana de
retirar o preço do petróleo do dólar provoca um choque que, do epicentro sul
americano, faz tremer todo o palácio imperial alicerçado no dólar. So o exemplo
da Venezuela se espalhasse, se o dólar cessasse de ser a moeda dominante do
comércio e das moedas das reservas internacionais, uma quantidade enorme de
dólares entraria no mercado fazendo cair o valor da moeda americana.
Washington observa, sobretudo a parceria
russo-chinesa com preocupação crescente: o intercâmbio entre os dois países
está em forte crescimento: ao mesmo tempo, aumentam os acordos de cooperação
russo-chineses no campo energético, agrícola, aeronáutico, espacial e no das
infraestruturas. O fornecimento de gás russo à China , cerca de 38 biliões de
metros cúbicos por ano, através do gasoduto Sila Sibiri, a partir de 2019, abre
a exportação energética russa para Oriente, enquanto os Estados Unidos procuram
bloqueá-la para Ocidente, para a Europa.
Na «guerra dos gasodutos» os Estados Unidos
conseguiram bloquear o South Stream em 2014, o gasoduto que, segundo
um acordo entre os governos, deveria ter ligado a Rússia à Itália através do
Mar Negro (em águas territoriais russas, búlgaras e turcas)e via terra, através
da Bulgária, Sérvia, Hungria, Eslovénia e Itália até Tarvisio (Udine). Fazendo
pressão, sobretudo, sobre a Bulgária, a Administração Obama, com a colaboração
da União Europeia, conseguiu enterrar um projecto já começado de grande
importância para a mesma União Europeia. Para contornar a Ucrânia, corredor
sempre mais inseguro para os gasodutos russos, Moscovo procura vias
alternativas com a duplicação do North Stream, através do Mar
Báltico, a realização do TurkStream através do Mar Negro, até à
Turquia e com o seu prolongamento, o Poseidon, através da Grécia até Itália.
No Médio Oriente, a «guerra dos
gasodutos» ainda é mais explosiva enquanto se transpõe para a realidade. A
intervenção militar russa na Síria, em 2015, em apoio às forças governamentais,
derruba o destino do conflito. Os caça-bombardeiros russos destroem, uma após
outra, as fortalezas do ISIS, abrindo caminho para as forças de Damasco. Os
Estados Unidos, deslocados, jogam a carta da fragmentação da Síria, apoiando os
independentistas curdos e outros. Moscovo usa ao mesmo tempo instrumentos
económicos, estipulando em 2017, acordos com o Irão para a realização de
infraestruturas ferroviárias e energéticas, entre as quais um gasoduto através
do Irão e da Índia, fortemente oposto pelos EUA. Washington responde com um
movimento previamente concordado com Israel: o Presidente Trump ataca
violentamente o Irão, acusando-o de violar o espírito do «acordo» sobre a
questão nuclear estipulado em Teerão, em 2015, com o Grupo 5 + 1 (USA,
Grã-Bretanha, França, Alemanha, China e Rússia). Não obstante a própria Agência
Internacional para a Energia Atómica garantir que o Irão está a cumprir o
acordo e que não está a tentar fabricar armas nucleares, ao contrário do que o
Presidente Trump afirma, a questão é reaberta artificialmente, originando um
processo perigoso cujos resultados são imprevisíveis. O ataque de Washington é
dirigido não só ao Irão, mas contra a Rússia, que está a reafirmar a sua
presença no Médio Oriente.
Tal sistema cria no mundo uma polarização
crescente entre a riqueza e a pobreza. Um estudo indica
que 86% da riqueza global (em termos de dinheiro e propriedade) está
concentrado nas mãos de 8% da população adulta mundial. Os restantes 92%
possuem, apenas, 14% da riqueza global. Excluído o extracto intermédio, a
situação pior é a do extracto inferior, composta por 3 biliões e meio de
pessoas, que representam quase 3/4 (três quartos) da população adulta mundial:
globalmente menos de 2,5% da riqueza global. A faixa mais pobre não possui nada
ou quase nada. Mais de dois biliões de pessoas em África, Ásia e América
Latina, sobretudo nas zonas rurais, vivem na pobreza ou em condições de
gravíssimas restrições económicas. Entre estas, cerca de um bilião encontram-se
em pobreza extrema, ou seja, numa condição social caracterizada pela
desnutrição crónica, situação de habitação e de higiene desastrosa, alta
incidência de doenças infecciosas e parasitárias, grande mortalidade, sobretudo
infantil, duração média de vida reduzida, analfabetismo, falta de poder de
decisão, dependência, marginalização, vulnerabilidade e insegurança constante.
Das aldeias da África sub-shariana até aos ‘bidonville’ asiáticos e latino-americanos,
os pobres vivem o mesmo drama, provocado pelas mesmas causas de fundo.
Basta pensar no facto de que, enquanto é
produzida no mundo uma quantidade de alimentos que seria suficiente para
assegurar um bom nível nutritivo a cada habitante da Terra, sofrem de fome (ou
seja, são afectadas de subalimentação crónica) cerca de 800 milhões de pessoas
– um número equivalente à população de 13 países da dimensão da Itália – e
cerca de 2 biliões de pessoas são afectadas pela má nutrição, devido à carência
de ferro e vitaminas na alimentação. Como consequência da subalimentação e da
má nutrição, morrem todos os anos milhões de pessoas entre as quais três
milhões de crianças de idade inferior a cinco anos. A causa fundamental da fome
é a pobreza originada pelos mecanismos económicos que prejudicam os pequenos
agricultores. Nos países em que grande parte da população é subalimentada,
vastas extensões de terra fértil são reservadas, não ao cultivo destinado à
alimentação interna, mas ao cultivo para exportação, produzido em grande parte
por pequenos agricultores, que obtêm uma renda muito baixa, visto que as redes
comerciais são controladas por um oligopólio de multinacionais. O problema da
fome é agravado pelo aumento dos preços dos géneros alimentares, devido em
grande parte ao facto de que na Bolsa de mercadorias os operadores financeiros
compram e vendem através de contratos futuros quantidades
enormes de produtos alimentares, ganhando se o preço aumenta em relação ao
concordado aquando a estipulação do contrato.
Esta é a ordem económica mundial que os
Estados Unidos procuram por todos os meios conservar e controlar. Não tendo a
força económica para fazê-lo, lançam sobre o prato da balança a espada da sua
força militar e pressão política. O objectivo político perseguido por
Washington é claro: afastar do caminho qualquer Estado ou movimento
político/social que possa prejudicar os interesses fundamentais políticos,
económicos e militares dos Estados Unidos da América, colocando em risco a sua
supremacia. Nesta estratégia, são acompanhados pelas potências europeias da
NATO e outras,como Israel e Japão, as quais, apesar de ter contrastes de
interesses com os USA, alinham-se sob a liderança dos Estados Unidos, quando se
trata de defender a ordem económica e política dominada pelo Ocidente.
Confirma-o a ‘psyop’ lançada pelos
dispositivos político-mediáticos de todo o Ocidente contra a Síria. Depois de,
durante cinco anos ter procurado derrubar o Estado Sírio, esmagando-o a partir
do interior, com grupos terroristas armados e infiltrados do exterior e
provocando mais de 250.000 mortos, no momento em que as operações estão a
fracassar devido à intervenção russa de ajuda às forças sírias que apoiam o
governo, lança-se a operação psicológica para fazer parecer como agressor, o
Governo e todos os sírios que resistem à agressão. O objectivo da psyop é
a demonização do Presidente Assad (como foi feito a Milosevic e Gadddafi),
apresentado-o como um ditador sádico que goza a bombardear hospitais e a
exterminar crianças, com a ajuda do amigo Putin, retratado como o novo Czar do
império russo renascido.
A pressão militar USA no Mar da China
Meridional e na Península Coreana, dirigida contra a China, a guerra USA/NATO
no Afeganistão, Médio Oriente e África, o empurrão USA/NATO na Ucrânia e o
consequente confronto com a Rússia, caem na mesma estratégia de contraste à
parceria russo-chinesa e à sua tentativa de remodelar a ordem económica e
política global. Na mesma estratégia está o plano de minar os BRICS a partir de
dentro, elevando a direita ao poder em Brasília e em toda a América Latina. É
confirmado pelo comandante do US Southern Command, cuja área de operações
compreende a América do Centro e Sul: numa audiência
no Senado acusa a Rússia e a China de exercer uma «influência maligna»
na América Latina, para também fazer avançar aí «a sua visão de uma ordem
internacional alternativa».
Num memorando transmitido
em Outubro de 2017 às Forças Armadas dos Estados Unidos, o Secretário da
Defesa, Jim Mattis, faz uma verdadeira declaração de guerra: «Somos um
Departamento em guerra. Devemos estar preparados para enfrentar uma situação de
segurança global cada vez mais complexa, caracterizada por um declínio
acelerado da gestão da ordem internacional baseada em regras. A Rússia violou
as fronteiras das nações vizinhas e quer ter poder de veto sobre as decisões
económicas, diplomáticas e de segurança dos seus vizinhos. A China é um
adversário estratégico a longo prazo, que atemoriza os seus vizinhos enquanto
aumenta as tensões no mar da China Meridional. Para a segurança e a
estabilidade global, é necessário que as nossas Forças Armadas permaneçam a
força de combate mais potente do mundo. Devemos dar prioridade a um dissuasor
nuclear seguro e fiável, colocar em campo uma força convencional decisiva e
manter uma capacidade fundamental de conduzir uma guerra não-convencional». No
final da proclamação, antes da assinatura, o Chefe do Pentágono escreve à mão,
em letras maiúsculas, «CHARGE!» («CARREGAR!»).
A seguir:
9.2 O sistema bélico planetário dos Estados Unidos da
América
Tradutora: Maria Luísa de Vasconcellos
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